Inconstitucionalidades na tributação de remessas internacionais realizadas por pessoas físicas

No último mês, o tema dos noticiários foi a medida anunciada pelo governo federal de que iria acabar com a isenção de impostos de encomendas internacionais que possuem valor inferior a US$ 50,00 (aproximadamente R$ 250,00), o que afetaria consumidores de produtos importados adquiridos por portais de comércio eletrônico, como as plataformas: Shopee, Shein e AliExpress.

A justificativa seria a ocorrência de fraudes em massa, como a ocultação do envio por pessoa jurídica (simulação do remetente) ou omissão do valor real da compra, com a ocultação do valor real das mercadorias ou fracionando as compras, para permanecer dentro do limite para isenção. A ideia seria taxar todas as compras, independentemente do valor, em 60% sobre o valor da compra, acrescido do valor do frete.

Por conta da repercussão negativa, o governo recuou e desistiu de publicar Medida Provisória que alteraria as regras vigentes, embora tenha sinalizado que pretende voltar a discutir o tema futuramente.

Entretanto, as regras vigentes levantam diversas dúvidas nos contribuintes, uma vez que a Receita Federal se manifestou no sentido de que esta isenção nunca existiu para o comércio eletrônico (venda de pessoa jurídica para pessoa física), mas tão somente no envio de encomendas de pessoa física para pessoa física.

Esta declaração inflama o debate acerca da constitucionalidade das regras sobre remessas internacionais. Isto porque as normas gerais sobre o assunto são dadas pelo Decreto Lei nº 1.804, de 3 de Setembro de 1980, recepcionado pela Constituição Federal com status de Lei Ordinária, que prevê que o Ministério da Fazenda estabeleceria regras sobre a isenção do imposto de importação, podendo “dispor sobre a isenção do imposto de importação dos bens contidos em remessas de valor até cem dólares norte-americanos, ou o equivalente em outras moedas, quando destinados a pessoas físicas” (artigo 2º, inciso II, do DL nº 1804, de 03/09/1980).

O ato normativo do Ministério da Fazenda que regulamentou a questão foi a Portaria MF Nº 156, de 24 de junho de 1999, que definiu que “Os bens que integrem remessa postal internacional no valor de até US$ 50.00 (cinquenta dólares dos Estados Unidos da América) ou o equivalente em outra moeda, serão desembaraçados com isenção do Imposto de Importação, desde que o remetente e o destinatário sejam pessoas físicas” (artigo 1º, §2º, Portaria MF nº 156, de 24/06/1999).

Como se verifica, a Portaria diverge do Decreto-lei (lei ordinária) em dois pontos fundamentais: o limite de isenção (50 ou 100 dólares americanos) e a necessidade de o remetente também ser pessoa física (não há essa exigência no Decreto-Lei, que somente impõe que o destinatário o seja). O que esta Portaria pretende é inovar nas regras para isenção tributária, restringindo a sua aplicação, contrariando o disposto em lei ordinária. O próprio ato administrativo utilizado (portaria) não pode legislar sobre isenção de tributos, como prevê o artigo 150, §6º da Constituição Federal:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: § 6º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993).

O Código Tributário Nacional também prevê a aplicação da chamada estrita legalidade (somente por meio de lei) para aplicação, modificação ou inovação sobre isenção tributária: Art. 97. Somente a lei pode estabelecer: VI – as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades. Art. 176. A isenção, ainda quando prevista em contrato, é sempre decorrente de lei que especifique as condições e requisitos exigidos para a sua concessão, os tributos a que se aplica e, sendo caso, o prazo de sua duração. Parágrafo único. A isenção pode ser restrita a determinada região do território da entidade tributante, em função de condições a ela peculiares.

Desta ótica, verifica-se ser totalmente ilegal e inconstitucional as inovações trazidas pelo artigo 1º, §2º, Portaria MF nº 156, de 24/06/1999. Nos tribunais, há decisões divergentes sobre o tema: a Turma Regional de Uniformização (TRU) dos Juizados Especiais Federais possui entendimento uniformizado de que a isenção do imposto de importação incidente sobre mercadoria postada por remessa internacional é de 100 dólares americanos quando o destinatário for pessoa física, sem restrição quanto ao remetente1.

Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça, em decisão de 2020, entendeu que, pelo fato de o Decreto-Lei estabelecer que norma ulterior regulamentaria a isenção, as inovações da Portaria MF nº 156/1999 são “legais, ante a autorização contida nos arts. 1º § 4º e 2º, II, do Decreto-lei 1.804/80, os requisitos estabelecidos no art. 1º, § 2º, da Portaria 156/99, do Ministro de Estado da Fazenda, e no art. 2º, § 2º, da Instrução Normativa 96/99, da Secretaria da Receita Federal, para a isenção do imposto de importação dos bens contidos em remessas postais internacionais de até US$ 50,00 (cinquenta dólares americanos), quando remetente e destinatário são pessoas físicas².

Já o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em decisão de 2021, entendeu que “A Portaria MF 156/99, ao exigir que o remetente e o destinatário sejam pessoas físicas, restringiu o disposto no Decreto-Lei nº 1.804/80. Não pode a autoridade administrativa, por meio de ato administrativo, ainda que normativo (portaria), extrapolar os limites claramente estabelecidos em lei, pois está vinculada ao princípio da legalidade”.³ Importante ressaltar que quem suporta o pagamento deste tributo será sempre o consumidor, sendo que o pagamento efetivo pode ocorrer de duas formas: a plataforma em que foi realizada a compra pode inserir a tributação no produto no momento do pagamento da mercadoria, ou enviar o produto sem a tributação e, no momento do desembaraço aduaneiro em território nacional, o consumidor receberá uma notificação para efetuar o pagamento do tributo por meio de guia DARF, que pode ser emitida de forma virtual.

A Shopee, por exemplo, esclarece que a cobrança adicional de tributos pelo país do consumidor é suportada sempre pelo comprador, de modo que é possível, sendo taxado e não tendo interesse em pagar o tributo, solicitar o reembolso do valor da compra, que será efetivado com a confirmação da devolução do objeto ao remetente. A empresa também já se manifestou no sentido de que o próprio consumidor é o encarregado pelo pagamento do tributo (emissão de guia), para liberação das mercadorias eventualmente retidas. Como se verifica, há grandes chances de a taxação ocorrer por fundamentos inconstitucionais, de modo que o consumidor precisa socorrer-se ao Poder Judiciário para, talvez, ter seu direito à isenção garantido, caso o fundamento da tributação de sua remessa seja pelas novações.4


Redação: Katrus Santarosa

REFERÊNCIAS

1 – IUJEF 5018217-72.2015.404.7100/TRF 2 STJ – AgInt no REsp: 1680882 PR 2017/0149862-1, Relator: Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, Data de Julgamento: 15/12/2020.

2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/12/2020.

3 – TRF-4 -APL: 50246026920204047000 PR 5024602-69.2020.4.04.7000, Relator: FRANCISCO DONIZETE GOMES, Data de Julgamento: 24/03/2021, PRIMEIRA TURMA trazidas pela Portaria MF 156/99, visto que o tema está longe de ter entendimento pacificado na justiça. Por fim, ressalta-se que governo federal, antes de desistir de acabar com a isenção, sinalizou que realizaria a alteração por meio de medida provisória (MP). O Supremo Tribunal Federal, em julgamento da ADI 5.709/DF, assentou entendimento de que a medida provisória “não revoga lei anterior, mas apenas suspende seus efeitos no ordenamento jurídico, em face do seu caráter transitório e precário. Assim, aprovada a medida provisória pela Câmara e pelo Senado, surge nova lei, a qual terá o efeito de revogar lei antecedente. Todavia, caso a medida provisória seja rejeitada (expressa ou tacitamente), a lei primeira vigente no ordenamento, e que estava suspensa, volta a ter eficácia”.

4 – Deste modo, a MP precisaria ser votada na Câmara e no Senado, cujo quórum para deliberação necessário é de maioria simples nas duas casas. Restaria saber se, caso o governo volte a debater o tema no futuro, se eventual medida provisória objetivaria a revogação do Decreto-Lei nº 1.804/80, único caminho possível para não persistir na inconstitucionalidade e ilegalidades praticadas pela Portaria MF nº 156/99.

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